Dados do Trabalho


Título

HOMICIDIOS FEMININOS POR ARMA DE FOGO: UM ESTUDO MEDICO-FORENSE

Introdução

A violência contra a mulher, em suas diversas formas, física, sexual ou psicológica, é considerada um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde os anos noventa. Pesquisas globais mostram que a prevalência da VCM varia amplamente entre os países, com 15% das mulheres no Japão e 71% das mulheres na Etiópia relatando algum tipo de violência, física e/ou sexual, pelo parceiro íntimo durante a vida. Globalmente, cerca de um terço das mulheres que estiveram em uma relação sofreram algum tipo de violência física ou sexual. No Brasil, um estudo que analisou os achados do WHO Multy-country Study on Women’s Health and Domestic Violence Against Women, que pesquisou a violência em uma zona urbana de São Paulo e na região rural na Zona da Mata em Pernambuco (ZMP), encontrou uma prevalência de ao menos uma forma de violência por parceiro íntimo de 46,4% em São Paulo e 54,2% em Pernambuco. A violência psicológica, com 41,8% em São Paulo e 48,9% na Zona da Mata, foi a mais prevalente, seguida da violência física, com 27,2% e 33,3%, e sexual, que alcançou 10,1% e 14,3% em São Paulo e ZMP, respectivamente. O Código Penal brasileiro define o homicídio como “matar alguém”, mas adiciona peculiaridades com maior reprovação social, que podem ser computadas como qualificadoras, circunstâncias agravantes ou causas de aumento de pena, sendo aplicáveis à violência de gênero. O homicídio é a forma de violência mais extrema que uma pessoa pode infligir a outra, e priva a vítima do bem mais precioso, a vida, não permitindo reparação. A definição de femicídio/feminicídio é controversa, não existindo uma que englobe todos os aspectos do feminicídio e que seja aceita universalmente pelos pesquisadores. O termo femicide foi usado na década de 90 por Russel com o significado de “assassinato de mulheres por serem mulheres” para definir a condição em que o homicídio de mulheres está relacionado à condição de gênero, no contexto de violência doméstica ou familiar. No Brasil, o termo feminicídio foi adotado na Lei nº 13.104, de março de 2015, criada com o objetivo de combater os homicídios de mulheres, chamada “Lei do Feminicídio”, que o define como: “O homicídio cometido contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, violência doméstica ou familiar, por menosprezo ou discriminação à condição de mulher.” A lei prevê o aumento da pena em um terço, se o crime for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores, contra menor de 14 ou maior de 60 anos, portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental, na presença de descendente ou ascendente da vítima, ou em descumprimento das medidas protetivas de urgência.

Metodologia/ Discussão

Foi realizado um estudo retrospectivo das mulheres vítimas de homicídio por armas de fogo submetidas a autópsia no IMLNR, em Salvador, no período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2017. O IMLNR realiza as autópsias de mortes violentas acontecidas em Salvador e nos municípios da Região Metropolitana de Salvador (RMS). Os dados foram coletados dos laudos cadavéricos produzidos no Instituto, das guias de solicitação de exame médico-legal encaminhadas pela autoridade policial, das Declarações de Óbito emitidas e de relatórios médicos encaminhados por hospitais. Esses documentos, bem como os resultados dos exames complementares solicitados, ficam arquivados no IMLNR. Foram coletadas informações como idade, raça/cor, naturalidade, local de residência, estado civil e escolaridade, e informações médico-forenses como data, hora e local do óbito, quantidade e distribuição corporal das lesões, presença de lesões associadas, presença de gestação e causa mortis. Os exames laboratoriais analisados foram os resultados de alcoolemia, toxicologia e pesquisa de espermatozoides, PSA e DNA em secreções e materiais coletados das vítimas. Foram excluídos os casos de morte violenta em que não foi possível estabelecer com certeza a causa da morte como homicídio. As variáveis qualitativas foram descritas em termos de proporções, e as quantitativas, mediante medidas de tendência central e de dispersão, conforme se demonstrassem normais ou não.

Marco Conceitual/ Fundamentação/ Objetivos

Principal

Descrever as características demográficas, epidemiológicas e os padrões de lesões externas e internas encontrados em mulheres vítimas de homicídio por arma de fogo submetidas a autópsia no Instituto Médico Legal Nina Rodrigues (IMLNR) em Salvador, Bahia, no período de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2017.

Secundários

• Identificar o uso de álcool e outras substâncias psicoativas pelas vítimas, por intermédio dos resultados dos exames de alcoolemia e toxicológico;
• Classificar os resultados dos exames de pesquisa de espermatozoides, PSA e DNA nas secreções e amostras coletadas nas vítimas;
• Identificar os calibres das armas de fogo usadas.

Resultados/ Conclusões

No ano, 127 mulheres vítimas de homicídio por arma de fogo foram autopsiadas no IMLNR, a maioria natural de Salvador (61%). A média de idade foi de 29,6 ± 11 anos (min de 6 e max 57 anos), 51% tinham entre 12 e 29 anos, 30% de 20 a 29 anos e apenas 9% tinham mais de 50 anos. Quanto à raça/cor, 81% eram pardas, 14% brancas e 7% pretas. A maioria das vítimas era solteira (90%), com baixa escolaridade, 72% tinham o ensino fundamental e 3% tinham ensino superior. A ocupação habitual mais frequente foi estudante (17%), seguida de doméstica/do lar, com 16,5%, e professora, com 7%. O mês com a maior ocorrência de óbitos foi outubro (15%), seguido de janeiro (11,8%), abril e julho com 10%. Quando se considera a distribuição dos óbitos durante a semana, a quinta-feira e o domingo apresentaram as maiores percentagens, com 17% e 16,5%, respectivamente, seguidas da terça-feira (15,7%) e sábado (14,2%). Houve predominância do horário noturno, com 60% dos óbitos ocorrendo nesse período. Em 18 casos, 14% do total, não foi informada a hora do óbito. Sessenta e quatro por cento dos óbitos ocorreram em Salvador. O local mais frequente foi o hospital (40,2%), seguido da via pública (33,8%) e domicílio (14,2%). Das vítimas que receberam atendimento hospitalar, 80,4% chegaram sem dados vitais ou tiveram parada cardiorrespiratória ao chegar, e 19% foram submetidas a cirurgia ou internação. O número de orifícios de entrada variou de um a 32, sendo que três casos apresentaram lesões extensas por armas de grosso calibre, e em quatro casos não foi possível contar o número de orifícios devido à multiplicidade de lesões. A maioria das vítimas foi atingida a média distância (73%); 10% a curta e média distância, três vítimas tiveram lesões encostadas e a curta ou média distância, e uma vítima teve apenas tiro encostado. Quanto ao trajeto dos projéteis no corpo, como a maioria das vítimas foi atingida por mais de um disparo, mais da metade teve múltiplos trajetos nos planos coronal, horizontal e sagital, e apesar de terem sido descritos no laudo não foi possível tabular os dados. Nos casos em que foi possível descrever os trajetos: no plano coronal 18% das vítimas foram atingidas por disparos de frente para trás e14% de trás para frente; no plano horizontal, 21% foram atingidas de cima para baixo e 7% de baixo para cima e no plano sagital, a maioria dos disparos foi da esquerda para direita (23%).

Considerações Finais

Salvador apresentou uma quantidade grande de homicídios de mulheres por arma de fogo, tendo ocorrido em um ano quantidades maiores que de homicídios masculinas apresentadas em algumas regiões europeias durante 5 anos, sendo as mulheres jovens as principais vítimas. As mulheres vítimas de lesões por arma de fogo neste estudo apresentaram um número grande de lesões, atingindo várias regiões do corpo, principalmente crânio, tórax, face e pescoço, um padrão de lesões perpetradas com extrema violência (overkill), associadas na literatura a feminicídios, mas também observadas em execuções associadas ao tráfico de drogas. A proporção de lesões em face e pescoço foi maior que a encontrada em estudos internacionais, o que pode ser um indicativo de um número significativo de feminicídios na amostra. Os exames de alcoolemia e toxicologia, foram realizados na maioria das vítimas, o que está de acordo com os padrões internacionais, porém não foram pesquisadas drogas lícitas, apenas com pesquisa de Cannabis e cocaína. As drogas lícitas estão associadas a feminicídios em muitos países, principalmente barbitúricos, e considerando que o Brasil é um dos maiores consumidores desses tipos de drogas, seria recomendável sua pesquisa em mulheres vítimas de
homicídio. A pesquisa de DNA foi solicitada em uma pequena parte das vítimas (20%) apenas nas secreções vaginal e anal, e não foi realizada em 72% dos casos solicitados por não ter sido encontrado espermatozoides ou PSA nessas secreções. Em nenhum caso foi solicitada a realização do exame subungueal, que está relacionado na literatura com o aumento na identificação e condenação do agressor. A diferenciação dos diversos tipos de feminicídio, se íntimos ou associados a violência estrutural, por vingança ou retaliação de traficantes, que não foi possível neste estudo, é importante para o planejamento de ações do poder público na prevenção e investigação desses crimes. A falta de integração entre a perícia médico-forense e a investigação policial, caracterizada pela falta de informações sobre as circunstâncias e motivos do crime dificulta a investigação e elucidação desses homicídios.

Bibliografia

1-ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório Regional para a América Central do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. ONU Mulheres. Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero (femicídio/feminicídio). Brasília, 2014. Disponível em: https://issuu.com/onumulheresbrasil/docs/protocolo_feminicidio/28 Acesso em 3 jan. 2020.

2-WORLD HEALTH ORGANIZATION et al. Violence against women: Intimate partner and sexual violence against women: Intimate partner and sexual violence have serious short-and long-term physical, mental and sexual and reproductive health problems for survivors: Fact sheet. World Health Organization, 2014.

3-Meneghel, Stela Nazareth, and Vania Naomi Hirakata. "Femicídios: homicídios femininos no Brasil." Revista de Saúde Pública, v. 45 (2011): 564-574.

4- SCHRAIBER, Lilia Blima et al. Prevalência da violência contra a mulher por parceiro íntimo em regiões do Brasil. Revista de Saúde Pública, v. 41, p. 797-807, 2007.

5- Campbell, J. C., Webster, D., Koziol-McLain, J., Block, C., Campbell, D., Curry, M. A., ... & Laughon, K. (2003). Risk factors for femicide in abusive relationships: Results from a multisite case control study. American journal of public health, 93(7), 1089-1097.

6-Garcia, Leila Posenato, et al. "Estimativas corrigidas de feminicídios no Brasil, 2009 a 2011." Revista Panamericana de Salud Pública 37 (2015): 251-257.

7- Pereira AR, Vieira DN, Magalhães T. J. Fatal intimate partner violence against women in Portugal: A forensic medical national study . J. Forensic Leg. Med. 2013; 20(8): 1099-1107.

8- Justino, D. C. P., da Silva Costa, K. T., & de Andrade, F. B. (2021). Epidemiological profile of female firearm-related mortality. Medicine, 100(2).

Área

A violência no ambiente familiar e no ambiente social a visão da Medicina Legal e Perícia Médica

Instituições

Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública - Bahia - Brasil

Autores

BRUNO GIL DE CARVALHO LIMA, DÉBORA CRISTINA PEREIRA DE MATOS